Apenas a luz amarelada do abajur iluminava a beirada da cama. Ainda havia a luz do sol lá fora, mas ele fechou a porta da varanda e cobriu com a cortina azul-marinho. Desde que chegou não disse nada, nem um cumprimento sequer, jogou as pastas do trabalho sobre o sofá e foi direto ao encontro da mulher. Ela estranhou o comportamento dele. Achou melhor sentar na beirada da cama como pedido e esperar sem fazer qualquer pergunta. Desde os primeiros dias, quando passaram a morar juntos, algo estava diferente. Ela pensou que seria algo passageiro e foi cedendo, agora não sabia mais agir de outra forma.
O abajur acendeu sozinho. Isso sempre acontecia por causa do interruptor sensível e defeituoso que ficava encostado na cama. Vários dias ela acordou assustada com aquela luz sobre seu rosto. Desde menina só pegava no sono quando tudo se perdia na mais vasta escuridão, odiava dormir com a porta aberta e a luz do corredor acesa, foram anos até que sua irmã caçula se acostumasse com seu modo. Nisso ela fez questão de nunca ceder.
Ele deitou-se com cuidado e se aproximou das suas pernas, que estavam nuas até uns quatro dedos acima do joelho, ajeitou sua cabeça entre as duas coxas que eram como pequenas almofadas quentes. Recebeu carinho sobre o rosto áspero carregado da barba por fazer e quando abriu os olhos sentiu as primeiras lágrimas escorrerem, mornas, até umedecer o tecido daquelas almofadas. Preciso falar com você. Quero explicar tudo e quero que você só fale quando eu terminar. Ela sentiu uma sensação terrível, como se pequenos cristais de gelo começassem a ser bombeados pelo coração a todos os membros do seu corpo, porém fez sinal com a cabeça de que concordava com a proposta do companheiro.
— Eu não sei o que aconteceu. Quer dizer. Eu sei o que foi, mas não entendo o porquê – fechou os olhos por alguns segundo e continuou – Nossa relação é perfeita, eu não posso reclamar de você. Sempre esteve ao meu lado, me incentivou em meus projetos, se interessa pelas minhas coisas, diz que me ama com freqüência, nunca se recusou a me ouvir, como agora. Estava tudo perfeito, talvez até perfeito demais para alguém como eu. O fato é que comecei a duvidar de que eu sou capaz de receber tanto carinho, tanta dedicação...
— Você é! Perdão.
— Não sou. Já tenho a certeza. Apesar de tudo o que você me dá, eu quis mais. Deixei que meu egoísmo tomasse conta de mim e me permiti esquecer você. Mesmo te vendo, te tocando e dormindo ao seu lado me esqueci de você. Por isso, pude voltar a ser incompleto e a procurar o que faltava. Achei. Infelizmente.
Estava imersa em lembranças. Ela já havia entendido desde o inicio. Na verdade, pensava que sabia de tudo desde a noite anterior, quando sonhou que ele estava perdido em um lugar desconhecido pedindo ajuda ao céu e à terra sem poder vê-la. Ela sem poder aproximar-se. Algo a prendia, mas não eram correntes ou grades, parecia ser algo que carregava, penosamente, dentro de si. Sonhou por toda noite o mesmo sonho. Que horror! Era o que dizia a si mesmo quando levantou de manhã e foi até o espelho do banheiro lavar o rosto, enquanto ouvia o portão da garagem abrindo e a porta do carro fechando. Quer que eu pare? A pergunta fez com que ela voltasse ao quarto iluminado apenas pelo velho abajur. Fez que não com a cabeça.
— Reencontrei uma amiga dos tempos da faculdade, na época servíamos de confessionário um para o outro. Resolvi dizer o que estava acontecendo comigo. Ela foi compreensiva, se dispôs a me ajudar. Eu retribuía, ouvindo sobre seus conflitos e decepções recentes que tivera num breve casamento – nem chegaram a se casar, na verdade só juntaram os trapos, como nós – será que nos casamos sem perceber? Nos tornamos cúmplices. Qualquer problema que me atormentasse era ela quem eu procurava e vice-versa. Eu realmente achava que tinha me esquecido de você, não me lembrava.
Nossos encontros foram se tornando mais freqüentes e intensos. Nos sentíamos como dois renegados, dois incompreendidos que só compreendiam um ao outro. Era uma linda amizade, que acabou se tornando um erro. Um dia eu estava me sentindo ótimo. Minhas dúvidas pareciam estar desaparecendo, minhas preocupações diminuindo. A nuvem que pairava sobre você se dissipava. Ela me procurou para dizer que tinha ido atrás do ex e que ele, simplesmente, a ignorou. O ex já a esqueceu, não como eu havia feito com você. Essa constatação acabou com ela, a derrubou. Fiz de tudo para consolar através da conversa e da aproximação. A crise só terminou quando a razão abandonou nossos corpos ao livre arbítrio da alma. Naquele momento um vento traiçoeiro soprou a nuvem de volta ao seu território. Depois de irmos embora acho que a ficha caiu. Você voltou. Eu voltei. Não consigo mais parar de pensar em ti. De querer vir para ficar junto com você. Já faz dois meses...
— Que não transamos – ela interrompeu com calma, mas sem pedir perdão.
— Eu não consigo. Penso em você a todo instante, mas quando te vejo a consciência me proibi de continuar te enganando. Por isso estou sendo tão sincero, estou te dizendo tudo isso porque quero ser feliz novamente contigo. Eu só fui feliz com você. Me entende?
— Entendo – respondeu secando as lágrimas que caiam dos seus olhos e dos dele com as pontas dos dedos – Mas agora eu preciso de um novo abajur.
2 comentários:
Depois de um tempo, com o estado de espírito diferente, eu vejo esse seu conto de uma outra maneira. Ainda é lindo.
e nem tudo é o que paree ser, sempre.
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